1996... Estampado na placa de
metal disposta milimetricamente acima da soleira da porta, mais que enfeite
para o seu escritório, a retratação de sua importância na ocasião... “para isso
servem os prêmios”.
Impulsionando o corpo leva a
cadeira para frente, aproximando-se da entrada e da placa onde se pode ler seu
nome, e para trás, distanciando-se... “Faz tanto tempo!”
-- “O que importa é viver o
agora”.
Nem sempre pensou assim, mas
agora, amadurecida, não lhe é possível esquecer as atribuições do hoje. Os
papéis sobre a mesa a conduzem, embora sem pretensão, a refletir sobre o seu
cotidiano:
A última edição daquela
revista! Teve que cancelar a renovação da assinatura depois de tantos anos. Não
era tão cara, mas era mais uma dentre várias. “Tudo bem, não era importante”,
justifica-se. Servia apenas para distração e atualização, “nem estou mais lecionando!”
No bilhete, seu neto pede novamente
um par de tênis: “Um por mês? Tem pés de faca!".Imagina que se não tivesse internet, teria de vaguear por lojas com o fedelho, escolher,
experimentar, desistir, recomeçar. Gastaria mais e muito mais tempo também. “Pelo
menos está mais fácil fazer suas vontades”.
Pega o extrato de sua conta em
cima de umas revistas velhas. Confere a cobrança da taxa de serviço. Paga para
guardar o dinheiro que é seu. “Não deveria o banco me pagar um percentual para
eu movimentar meu dinheiro nele? Eu que pago!” Pensa que o banco lhe deveria
retribuir, mas não, cobra cada vez mais taxas, e abusivas: “Tarifa de aviso
automático. Que avisos são estes?”. Não se lembra de ter sido avisada de nada.
Tem sua pequena “fortuna” no
mesmo banco há 35 anos, na poupança. Rende abaixo da inflação. Quando pediu orientação
ao gerente recebeu uma “empurrada” de produtos que cumpririam as necessidades
dele, não as suas, e desistiu.
Soma a aposentadoria com a
pensão do marido morto, tudo minguado! Lembra das pessoas que acham abusivo receber
aposentadoria...”fiz tanto para merecer este benefício.” Pensão de pai falecido
recebida pelo funcionalismo concorda que é abusiva, mas pensão de marido não!
Nem pode prescindir deste valor.
Guarda na caixinha um extrato
da conta cancelada pela manhã. A conta só
dava despesas. Foi pessoalmente ao banco, esperou 30 minutos para ser atendida.
Motivo do fechamento? “Vocês demoram para atender”. Resposta da gerente
constrangida: “Demorei para te atender né?!” Sente-se vingada, além de ter se
livrado de tentativas de permanência.
Telefonia, uma pequena fortuna
“mas o número fixo é antigo, toda a família e os amigos o conhecem”, justifica-se,
buscando uma possível desvantagem para encerrá-la, embora o telefone raramente
toque. Promete entre botões que pensará nisso e decidirá o que fazer depois. É
um dos seus casos crônicos de procrastinação.
Contas, contas. Tem que ter
também celular? Se fica em casa a maior parte do tempo porque não atender no
fixo? E se está fora, precisa mesmo estar disponível? São estas as benesses da
modernidade? Mais contas a pagar.
A TV tem que ser a cabo pois a imagem é ruim mesmo com antena. Os canais abertos nem pegam. O que estará acontecendo? Mercado da imposição? O pacote básico
faz jus ao nome. Decidiu não ampliar seus canais, não justificam o preço
dada a quantidade de tempo que vê televisão. Paga apenas para ter imagem decente. "Diferente de antigamente, era só subir no telhado e girar a antena". Ri da lembrança.
-- Imagem de qualidade não deveria
ser obrigação da transmissora? Tenho que pagar a parte?
Cartas pedindo dinheiro para
causas sociais. Crucifixo com seu nome como cortesia, pedindo contribuição. Fotos
de crianças chorando famintas com números alarmantes de desnutrição e violência
infantil. Terá que doar R$ 40,00 por mês para que o “pequeno Bruno tenha a
chance de sobreviver” e outros famigerados tenham assistência digna.
-- Mas não é para isso que
pago impostos? Quase 50% de minha renda,
e ainda tenho que pagar para ter os serviços elementares.
Continua o trecho da carta audaciosa: “Não temos o direito de negar o
futuro a uma criança. Por isso, reagimos”, E os
meus direitos? Pensa com revolta.
-- Reagem
cobrando de quem paga impostos? Do trabalhador que deveria ter direitos
garantidos?Não entendo essa lógica!
O preço da energia elétrica só
aumenta, e ao consumi-la tem de pagar “adicional bandeira vermelha”. A lógica
de mercado de um produto que é básico, mas não se pode consumir de acordo com a
necessidade do cliente, é uma das coisas que a deixa pensativa. Tenta entender.
Carnê do convênio. Pago, e bem
pago. Agora faliu! Pagou em dia para que em caso de precisão não tivesse que
depender de assistência pública. Dançou!
Impulsionando o corpo leva a
cadeira para frente, afasta todos aqueles documentos, papéis, extratos, cartas,
revistas.
Impulsionando novamente o
corpo leva a cadeira para trás, distanciando-se... Coloca os dois pés sobre a
mesa, dobra os braços frente ao peito, olha para o teto, respira...
-- O que importa é o amanhã. A
vida começa aos sessenta.