Está
nervoso. Duas vezes em menos de um mês. 25 de janeiro e carnaval. “É pra ficar
nervoso.”
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Não desconte nas pessoas, coitadas. Elas sofrem como todos nós. --- alertou a
esposa. --- Se não estivesse tão gripada o acompanharia.
--- Não
tinha que ser! --- conforma-se Arnesto, visivelmente irritado.
Pela
segunda vez pede ao chefe para sair mais cedo da oficina, que fica próxima de sua casa. Está pedindo há duas
semanas. Constrangido espera o melhor dia para se ausentar, e passam três dias...
e oito ... e dezoito ... Como explicar que se ausentará do serviço para recorrer de uma multa? O mesmo motivo no mesmo mês, “parece mentira!”, pensa aflito.
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De novo seu Arnesto!
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Amanhã é o último dia, vai acabar o prazo!
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Vai, vai, vai! --- responde o chefe gesticulando.
Sai
apressadamente, olhando novamente o relógio, ainda com tempo de ouvir os gritos
vindos do fundo da oficina:
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Se der, volta pra acabar o trampo.
Documento
do carro, a notificação, documento de identidade... confere a lista ao entrar no
carro. Xerox de tudo... “Confere!”
Fecha
os olhos e recorda da esposa, culpando-o --- Você relaxou, tem que ir hoje. -- “Se
dependesse de mim já teria ido. Justo eu que não gosto de deixar nada para a última
hora.”
Terá de atravessar a cidade. Nervoso, nem se lembra de parar para comer. Para piorar, chove. Rua do Manifesto. Av. D. Pedro I. Av. do Estado. Trânsito. Fumaça. Calor. Av. Aricanduva. “Muito feio este lugar!” Chuva. Claro que nem pensou em trazer o guarda-chuva. Novamente ouve a voz da Isaura:
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Leva o guarda-chuva.
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Não vai chover não!
Basta
desobedecê-la que ouve sua voz como se de corpo presente, martelando em seu
pensamento. “Foi praga!”
Desce
nervoso. Corre com os documentos escondidos entre os braços fechados. Pisa numa
poça. Xinga. Chega. Respira fundo para não descontar nos funcionários.
Gentilmente
lhe indicam o balcão de informação. Lá, gentilmente lhe indicam o balcão onde
deve ir.
Na
fila do guichê olha para cima para
evitar que um estranho puxe conversa. Quando nervoso, não está para papo furado.
Sua vez. Gentilmente lhe entregam a lista dos documentos necessários. Conferem
os que trouxe, falta a habilitação.
Sai
da fila. Dirige-se ao balcão de informações onde gentilmente lhe indicam a loja
onde tirar xerox.
Na
volta vai direto ao guichê, sem esperar
novamente na fila. Reconferem os documentos.
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Tudo ok. Dirija-se ao guichê seis.
--- indica gentilmente a atendente com sorriso plástico.
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Preencha este formulário. --- indica o outro atendente, com sorriso igual.
“Merda!
Esqueci a caneta!” Pensa cerrando os punhos com força e levando-o ao ar. Volta
resoluto e ainda mais irritado à loja. Compra a caneta. Retorna ao posto do
Detran e no balcão começa a preencher o formulário. “Ilustríssimo Sr.
Diretor... ilustríssimo uma pinóia! Nem sei quem é! Só quer levar o meu
dinheiro!”
A
cada campo sente mais inconformado. “Para que copiar se irá tudo junto,
xerocado?” Respira fundo e cerra os dois punhos. “Malditos!”
Último
guichê. Confere-se os dados copiados
e os documentos. Recebe outro formulário:
---
Neste aqui, apresente sua queixa.
Pergunta
se deve escrever tudo. Que trafegou na faixa reservada ao transporte coletivo e
foi fotografado pelo radar e autuado. Multa alta. Infração gravíssima. Mas isso
foi no feriado!
Gentilmente o atendente lhe explica o que deve escrever: que os radares de São Paulo só foram programados para os feriados nacionais, não estando programados para o carnaval, e até mesmo para o aniversário da cidade. --- Há um erro no sistema do departamento de operações do sistema viário, e eles multam errado --- resume o atendente, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo.
A
revolta parece deixar Arnesto engasgado, --- Se sabem disso porque não
consertam? Fazem eu perder meu tempo com um erro de vocês?
---
Nosso não senhor. --- Gentilmente responde o atendente. --- Erro deles. Aqui somos
outro órgão. Se acalme, sou apenas um funcionário, não tenho culpa, estou
querendo ajudar.
---
Desculpe. Mas vocês todos me irritam. Todos... os radares... a faixa reservada...
seu prefeito... o Cunha... Renan... a Dilma... tudo... tudo!
Sem
querer, falou muito alto. Olha em volta “será que alguém viu o vexame?” Pelo
tamanho das filas as reclamações são muitas, pois são muitos os reclamantes,
mas ninguém o olha, todos parecem preocupados com seus próprios dramas.
Volta
ao balcão escrevendo no formulário tudo o que lhe foi instruído. Retorna ao guichê e entrega o documento. O
atendente fita-o sorrindo automaticamente, de novo com aquela cara de plástico,
e não perde a piada:
---
Está chovendo... vai demorar para chegar em sua casa no Brás, seu Arnesto. ---
diz imitando o sotaque caipira do Adoniran quando pronuncia seu nome.
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